[Atenção! Este texto contém spoilers!]
Escrever textos como esse me dá prejuízo.
Depois de ler, pesquisar e escrever um texto sobre algumas das principais referências que inspiraram o Batman de Matt Reeves, foi impossível resistir à vontade de voltar aos cinemas.
A última vez que isso aconteceu — coincidência, ou não — foi com o Coringa, em 2019.
Da mesma forma que Todd Philips trouxe uma versão inédita do Palhaço do Crime para os cinemas, Matt Reeves conseguiu fazer isso com o Batman.
No caso do herói, é um pouco mais desafiador, porque preciso reforçar que, contando filmes focados em sua história e algumas participações, como em Esquadrão Suicida, existem 12 filmes com o personagem.
E a maioria começa pelo caminho mais óbvio, com o assassinato dos pais de Bruce Wayne sendo o catalisador para ele se tornar o Batman.
Na versão de Matt Reeves, não é bem assim e já vamos entrar em detalhes.
Enquanto escrevia, também percebi que poderia dissertar e analisar o filme inteiro neste artigo, e acabaria correndo para o ingresso.com para assistir de novo.
Então, vamos nos ater a dois momentos principais: a introdução e o desfecho — começando pela primeira aparição do Batman nesse novo universo.
União pelas sombras, cicatrizes e traumas
Antes do herói, somos apresentados ao vilão do filme, Charada.
E se você notar, a primeira aparição dele e do Batman acontecem da mesma forma, com os dois saindo da sombra.
O Cavaleiro das Trevas abre a sua participação com um monólogo, chega a dizer que ele é a sombra e usa a escuridão como um disfarce para amedrontar criminosos; então, somos apresentados à sua figura com ele caminhando para sair das sombras.
Em vez de um discurso, acompanhamos um Charada ofegante como o prelúdio de seu primeiro crime e sua primeira aparição também acontece com ele saindo da sombra.
A diferença é que o antagonista permanece estático e é a mudança de iluminação que o expõe.
Isso diz muito sobre o ponto de partida dos dois, porque herói e vilão nascem da descrença nas instituições políticas e no sistema. Foi a mesma Gotham hostil e corruptora que os incentivou a vestir suas máscaras, irem para as ruas e os transformou nos animais noturnos que testemunhamos.
Diferente de outros filmes, não vemos o Batman como ídolo ou ícone, mas como uma figura estranha. A cada investigação policial, sua presença causa incômodo e, logo na abertura, o personagem resgatado fica na dúvida se seria salvo ou agredido pelo herói.
Temos ainda um Bruce Wayne praticamente inexistente quando tira a máscara, sustentado pelo trauma da morte dos pais e numa eterna busca por vingança.
Quando pensamos em Selina Kyle, James Gordon e Alfred, os traumas e cicatrizes deixados pela corrupção e sujeira da cidade são também fortes motivações.
Enquanto Selina busca vingar sua mãe e sua amiga; Gordon se esforça por manter a integridade no departamento de polícia; e Alfred, como ex-militar, é atormentado por não ter conseguido salvar os Waynes e ainda ostenta as cicatrizes da culpa de não ter sido a figura paterna que Bruce precisava.
Voltando à apresentação visual do Batman, caminhando para fora das sombras, ela é um anúncio simples do que vamos testemunhar nas 3 horas de filme.
Sem pressa e no ritmo certo, para permitir o desenvolvimento emocional dos personagens e também o nosso — como telespectadores.
A construção visual da narrativa
Inspirado no trabalho do Edward Hopper e também nos filmes Noir, várias cenas parecem (ou são) filmadas através de vidros, ou em ambientes hermeticamente fechados — com pleonasmo mesmo, para reforçar a claustrofobia de alguns momentos.
Boa parte do filme se passa à noite e, mesmo quando é dia, a luz do sol mal parece fazer efeito e as cenas são desprovidas de cor.
Essa dessaturação e ambientação são representações dos próprios personagens, que se prendem às sombras e tem visões estreitas — deturpadas de acordo com cada trauma.
E agora sim, podemos falar da genialidade de Matt Reeves para introduzir o assassinato dos Waynes.
Uma história conhecida por um ângulo novo
O caminho mais fácil, nós já conhecemos.
Batman vs. Superman, por exemplo, trouxe uma bela alternativa de trazer a clássica cena sem se preocupar em apresentá-la como inédita.
Logo nos créditos de abertura, vemos um casal saindo do cinema com o filho, o cartaz da “A Máscara do Zorro” e nem precisamos esperar o assaltante surgir para saber qual será o desfecho.
Antes de entrar na nova versão, vale trazer um exemplo negativo de se trabalhar a origem do Batman como bastidores do personagem.
Não sei se você se lembra, mas, em Esquadrão Suicida — a versão desastrosa de 2016 — vemos o Cavaleiro das Trevas perseguir o Pistoleiro, acompanhado de sua filha em um beco, numa perspectiva parecida com a do assassino de seus pais.
Se você me perguntar, sabendo do trauma que isso trouxe na vida do Bruce Wayne, não acredito que ele assumiria o risco de proporcionar uma cicatriz parecida com a garota. Pelo menos, não da forma como acontece na cena.
Na versão do Matt Reeves, a introdução do assassinato não é explícita e a subjetividade fala mais alto.
Ainda na cena do primeiro crime do Charada, descobrimos com o Batman que foi o jovem filho do candidato a prefeito que encontrou seu corpo sem vida.
Nessa cena, o silêncio grita.
Mesmo sem ver o rosto de Robert Pattinson por baixo da máscara e da maquiagem, o olhar basta e a cumplicidade transcende à tela.
São alguns segundos que funcionam como referência para filmes intimistas.
Compartilhamos essa cumplicidade entre eles e não precisamos que ninguém nos conte que os pais de Bruce Wayne foram assassinados.
O silêncio e o olhar cumprem essa missão.
O Batman Noir, o batismo e a esperança
Como comentei no artigo sobre as referências que inspiraram o novo Batman, o Matt Reeves abraçou o Noir como um sub-gênero.
E quebrando o filme para analisar, encontramos uma narrativa Noir completa e das mais clássicas.
Partindo da visão de mundo pessimista e ambientação em uma cidade opressora, passando pelos personagens corruptíveis, pelo protagonista violento, até o desfecho pessimista.
O antagonista prova seu ponto e o personagem principal conclui ser incapaz de solucionar todo esse caos.
Se filmes como Chinatown ou Seven vieram à sua cabeça, não é mera coincidência.
E se você assistiu ao filme, sabe que essa cena abaixo marca o desfecho do que seria o Batman Noir.
Assim, fica ainda mais marcante a inspiração no trabalho do Edward Hopper e, quando lembramos que essa cena abre o trailer, aquele primeiro frame se torna quase um manifesto do que veríamos no filme.
Após o Charada ser preso, entramos numa espécie de ato final que abraça de vez o gênero de super-herói. Mas, ainda assim, Matt Reeves soube fazer isso de maneira maravilhosa.
Com a inundação de Gotham, temos uma espécie de batismo do Batman para reconstrução da cidade.
Após entender que não poderia ser apenas vingança e que precisava ser esperança, temos provavelmente a sequência do filme com mais cor.
Quando o Batman aciona o sinalizador com a luz vermelha alaranjada, ele aciona a esperança para a cidade de Gotham.
Quando ele estende o braço para ajudar o jovem, que encontrou o pai assassinado, ele estende o braço para si mesmo — resgatando-se do trauma da parte de seus pais.
Minutos depois de vilões atacarem o Batman e tentar remover sua capa, a composição da cena na água faz com que os cidadãos de Gotham se tornem sua capa.
A prévia da primeira aparição do herói se cumpre e o Batman caminha para fora das sombras.