Já que é Copa do Mundo, hoje vamos falar de futebol. Ou quase isso.
Se você não entendeu o gesto feito pelo jogador português Cristiano Ronaldo que está reproduzido na capa deste artigo, eu explico:
Foi uma alusão e uma provocação a mídia e a Lionel Messi, por uma capa de revista em que o argentino é visto junto a um bode.
Essa dupla inusitada foi uma brincadeira com o termo “bode”, em inglês goat, e o acrônimo G.O.A.T. — Greatest Of All Time (em tradução livre, melhor de todos os tempos).
O português não deixou barato e, logo após seu primeiro gol no mundial de 2018, fez questão de cutucar Messi e, de certa forma, reivindicar o título de melhor do mundo.
Alguns jornais estão dizendo que o gesto também pode ter sido uma provocação à barbicha do goleiro espanhol, David de Gea. Mas sejamos francos, qual você acha mais plausível? Ou ainda, qual versão você prefere?
Estamos de acordo que foi uma alusão ao bode e uma provocação ao craque do Barcelona, certo? Então, vamos lá:
Isso acabou reacendendo uma discussão que dura mais de dez anos. Afinal, qual dos dois é melhor?
“Cristiano Ronaldo definitivamente é o melhor do mundo porque Messi é de outro planeta.”
Quantas vezes você já ouviu algo semelhante?
Ou então:
“O Cristiano é extremamente esforçado e dedicado nos treinos. Mas o Messi já nasceu com o talento de jogar futebol.”
E assim, o prêmio de melhor do mundo vem sendo disputado por uma batalha digna de se tornar franquia de cinema:
Alien vs Robozão
E o que tem de errado com isso?
Bom, além da péssima piada que você acabou de ler neste subtítulo, temos o seguinte:
Por um lado, é como se Messi jamais tivesse treinado ou se esforçado na vida, não tendo mérito nenhum. Apenas nasceu genial.
Por outro, Ronaldo constantemente tem seus esforços e talento desmerecidos, sendo rotulado de Robozão ou Penaldo, por fazer muitos gols de pênalti.
Ou seja, são mais evidências de que estamos constantemente rotulando todas as pessoas ao nosso redor. Consciente ou inconscientemente, estamos sempre julgando os outros e não precisamos de um motivo para isso. Mas apenas de um bode expiatório.
E quer bodes expiatórios melhores que os dois maiores jogadores de futebol da atualidade?
Com esses rótulos, é possível fazer uma bela reflexão sobre a nossa forma de pensar e julgar o sucesso das pessoas. Começando pelo português:
A robotização de Cristiano
Ronaldo é um atleta completo, exemplo de empenho e determinação. Segue rotinas absurdamente restritas de treinos e já chegou a admitir ter o hábito de fugir do dormitório para treinar.
Não é difícil achar relatos de outros profissionais que jogaram com ele para confirmar isso.
Ainda assim, a maioria esmagadora da mídia e das pessoas não hesita em escolher Messi como preferido.
Mas o Ronaldo já foi eleito o melhor do mundo e recebeu a bola de ouro 5 vezes, exatamente o mesmo número que o argentino. Eles deveriam então ser considerados, no mínimo, do mesmo nível, não?
É nesse ponto que cometemos a maior injustiça com o português: apelamos para sua vaidade para criticá-lo.
Afirmamos que ele olha para o telão do estádio pelo menos 5 vezes por jogo, como se fosse um erro gravíssimo e irreparável. Mas já notou o que acontece quando um torcedor percebe que está sendo filmado?
E se acontece de ele se olhar no telão e logo em seguida marcar 3 gols e decidir uma partida, voltamos a reforçar: Cristiano é muito bom, mas…
Messi é de outro mundo
Quase como se precisássemos repetir para nós mesmos que o esforço não pode alcançar o dom, que a prática não pode atingir a perfeição. Mas por quê?
E a resposta dói:
Porque é muito mais fácil aceitar que o sucesso é um dom natural, com o qual você nasce, ou não. Do que se permitir pensar que, com muita prática e treino, nós podemos alcançar aqueles que julgamos “naturalmente bem-sucedidos”.
Por isso, damos ao Messi o dom de jogar futebol como se fosse genético e dizemos que ele é de outro planeta.
Nós humanizamos a falha e o fracasso, estereotipamos e julgamos com enorme facilidade qualquer pessoa que saia de sua zona de conforto em busca do êxito. E “alienizamos” o sucesso.
“Tenta-se fazer com que humano signifique fraqueza, estupidez, vadiagem, mentira, fracasso, covardia e fraude e se pretende exilar da história humana o herói, o pensador, o produtor, o inventor, o forte, o decidido, o puro – como se ‘sentir’ fosse humano, mas pensar não fosse; como se o fracasso e não o êxito fosse humano; como se a corrupção, não a virtude fosse humana.”
— Ayn Rand
Fazemos isso simplesmente por ser mais confortável. Por desafiar nossa zona de conforto. E não é fácil nos policiarmos para evitar que façamos isso.
Basta parar para pensar: é muito mais fácil nos identificarmos com a dor de uma pessoa e querer confortá-la do que com o sucesso de outra, não é?
Portanto, considerando esses rótulos, se eu tiver que escolher entre um dos dois jogadores, é impossível não me identificar mais com o português.
Não nasci sabendo nada, sem dons e sem talentos. Se cheguei em algum lugar, foi treinando, errando e aprendendo.
Mas dispensando os rótulos e falando de futebol, vamos parar com essa necessidade maluca de escolher qual é melhor e apreciar os dois. O esporte agradece!
Artigo originalmente publicado no blog da Comunidade Rock Content.