⚠️ Esse texto contém spoilers de “Não! Não olhe!”, do Jordan Peele.
É um privilégio ser contemporâneo de um diretor e roteirista como Jordan Peele.
Logo com seu primeiro filme, “Corra”, levou o Oscar de melhor roteiro original. E com “Nós”, deixou ainda mais nítido que era um dos principais nomes da nova geração do cinema.
Ao lançar “Nope” — “Não! Não olhe!” no Brasil (provavelmente porque “Não olhe pra cima” foi usado no ano passado) — Jordan Peele já estava no patamar de “preciso ver tudo o que ele lançar” para muita gente.
Eu sou uma dessas pessoas.
E não vou mentir: como a barra estava bem alta, principalmente por causa de “Corra”, não saí tão maravilhado assim com o filme de imediato. Mas, depois de alguns dias e digerir um pouco melhor, as alegorias que ele constrói na trama me acertaram em cheio.
Por um motivo simples: as críticas e reflexões que ele levanta sobre Hollywood também encaixam com perfeição no universo da criação de conteúdo.
Um soco na cara dos clichês?
A história de “Nope” se passa nos arredores de Hollywood, num dos cenários mais gastos por eles: os faroestes.
Depois de explorarem esse gênero ao máximo, hoje em dia é cada vez mais raro vermos novas produções nesse estilo ou ambiente. Mais raro ainda é vermos alguma abordagem inédita ali.
O excelente “Ataque dos Cães” é uma rara exceção e o novo filme de Jordan Peele, também. Ainda mais quando ele acrescenta um OVNI à trama e tem um protagonista interpretado por Daniel Kaluuya, que foge completamente do que se imaginaria de um “cowboy protagonista de faroestes”.
Quando nos traz essa visão diferente de um gênero tão gasto, ele dá pista de qual seria a principal temática do filme. Afinal, quem foi que gastou tanto assim os faroestes? Não foi Hollywood? Ou talvez, os criadores de conteúdo?
Além disso, vale uma menção honrosa para a forma como ele brinca com um clichê em um dado momento do filme.
Num dos momentos mais tensos de “Nope”, Jordan Peele nos entrega um alienígena de forma bem previsível. Então, literalmente, dá um murro na cara do clichê.
A espetacularização de tudo
“Um filme sobre espetáculo, e sobre nossa relação sombria com o espetáculo.”
Foi assim que Jordan Peele resumiu “Nope” em sua entrevista para Today. Mas ele também detalhou um pouco mais:
“Quando estamos dirigindo, estamos no trânsito e acontece um acidente que deixe o trânsito mais lento, isso acontece porque todos estão tentando espiar aquele espetáculo horrível.”
Então ele decidiu fazer um filme justamente sobre esse tema e, claro, encontrou uma forma mais discreta de dizer isso na abertura citando a Bíblia: “Lançarei sobre ti imundícies abomináveis, te envergonharei e farei de você um espetáculo.”
O OVNI da trama, na verdade, é um mero pretexto para nos mostrar a relação das pessoas com a sua “espetacularização”. E como cada um busca, à sua maneira, a fama, o reconhecimento e o retorno financeiro a partir do que poderiam tirar dele.
Visibilidade instantânea a qualquer custo
O repórter do TMZ é a personificação perfeita pelo retorno imediato e a qualquer custo, mas mirando sempre no mínimo custo possível.
Seu único objetivo é ser o primeiro a criar algum registro do espetáculo que as pessoas tanto desejam ver. Seja um novo evento, seja a morte de uma celebridade, ou uma novidade.
Se precisar, pode ter certeza que apelaria para teorias mirabolantes com gravações de má qualidade.
Exploração para retorno imediato (inclusive dos próprios traumas)
No caso de Jupe, ele já havia explorado um trauma da própria vida para transformar em um espetáculo que lhe trouxesse dinheiro: o episódio em que um macaco atacou todo o elenco de um sitcom e ele foi o único a escapar ileso.
Após fazer isso com a própria vida e ver que dava retorno, ele não hesita em fazer também com OVNI e cria uma experiência que as pessoas precisavam pagar para testemunhar aquilo.
Busca idealista pela grande cena
No extremo oposto dos dois primeiros, Holst, o diretor de fotografia que vai até a fazenda para registrar o OVNI com uma câmera mecânica, busca uma única coisa: o registro da grande cena e do grande espetáculo.
Enquanto Jupe e o repórter do TMZ estão dispostos a arriscar a própria vida — desde que tenham um registro monetizável disso —, Holst está disposto a fazer o mesmo para capturar a versão perfeita do espetáculo, mesmo que ninguém veja.
No próprio filme, ele comenta antes que sempre guardava algumas versões de suas filmagens apenas para ele. É a personificação do desejo de se criar uma versão idealista e perfeita, que ninguém jamais verá.
Luta por reconhecimento e justiça históricos, além da fama
No caso de Emerald, ela deseja sim a fama e o reconhecimento, mas para conquistar justiça histórica.
Se a história ignorou o homem negro no cavalo no primeiro registro cinematográfico da história, ela poderia garantir que o primeiro registro de um OVNI seria feito por ela.
Em vez de tentar qualquer registro para ser a primeira, ela faz questão de ter uma prova irrefutável antes de buscar a fama.
Fama como consequência
OJ é um caso à parte na alegoria. Seu grande desejo é seguir com o legado de seu pai e continuar trabalhando ali na fazenda.
O personagem de Daniel Kaluuya mostra quase um desprezo pela espetacularização dos eventos e tem um respeito enorme pelos animais. É esse respeito, inclusive, que facilita que ele descubra que, para não ser levado pelo OVNI, bastava não olhar diretamente para ele.
Sem OJ na história, o desejo dos personagens registrarem aquilo para que outras pessoas pudessem testemunhar poderia acabar num desastre ainda maior.
E na criação de conteúdo?
Daria para fechar com uma pergunta a la quiz de internet: “quem é você na criação de conteúdo?”.
Mas raramente veríamos alguém dizendo que são o personagem do Jupe, ou o repórter do TMZ.
O que vemos de uma forma bem generalizada, na prática, é uma bela corrida até o pote do outro lado do arco-íris — que seria de biscoitos, nesse caso.
O exemplo mais imediato é a morte da Rainha Elizabeth II, e a enxurrada de posts e ensinamentos sobre tudo a partir disso. Desde lições de vida até ensinamentos sobre marketing.
Talvez, você não esteja lendo esse texto assim que foi publicado e o exemplo mais recente seja outro.
Mas essa é a beleza do trabalho que Jordan Peele fez aqui: ele constrói um grande espelho para a nossa “sociedade da espetacularização” e a forma como produzimos e consumimos um conteúdo.
Gastamos e sacrificamos um tema, ou talvez até nós mesmos, ao máximo — enquanto estiver trazendo algum retorno.
Até quando?