⚠️ Antes de qualquer coisa, um aviso: não leia este texto se você ainda não viu o filme.
Sua experiência e sua sensação ao ver “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo” valem muito mais que qualquer análise que você possa encontrar na internet, incluindo a minha.
Por isso, nem me darei ao trabalho de escrever uma sinopse para apresentar a trama a quem ainda não viu, como costumo fazer.
Não é todo dia que surge um filme com os requintes de um clássico instantâneo.
Nos últimos anos, colocaria apenas três dos que assisti nessa classificação: Coringa, Parasita e, agora, Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo.
E a produção mais recente, dirigida por Daniel Kwan e Daniel Scheinert, começa fazendo algo que Parasita também soube fazer muito bem: a transição entre diversos gêneros.
Do intimista ao complexo e ao besteirol
As primeiras cenas nos apresentam a família Wang em sua casa, logo acima da lavanderia que os sustenta e temos vários traços de um drama intimista.
Dificuldades financeiras, problemas com a receita federal (IRS), além de relacionamentos conturbados entre os Wang.
Enquanto o marido, Waymond, se prepara para pedir o divórcio a Evelyn, ela não consegue admitir a orientação sexual da filha para apresentar sua namorada ao pai, Gong Gong.
E ainda existe uma tensão muito grande com a chegada de Gong Gong, anunciando problemas mal resolvidos entre ele e sua filha.
Logo depois da situação em que Evelyn apresenta a namorada de sua filha, Joy, ao pai como se fossem amigas, um diálogo que parecia ser um pedido de desculpas da mãe é um prenúncio do estilo de humor que veremos.
Em vez disso, ela diz apenas “Você precisa comer melhor. Você está engordando!”.
Depois disso, o filme passa a mesclar diálogos profundos e situações complexas, com situações bizarras e trechos dignos de uma comédia besteirol.
E faz isso de forma genial, como se estivesse nos anestesiando ou amenizando algumas pancadas de diálogos como o momento em que Waymond diz:
“Você tem tantos objetivos não realizados e sonhos que você jamais seguiu. Você está vivendo a pior você.”
Sonhos abandonados e vidas não vividas
O que parece ser simplesmente um multiverso é uma forma surreal de tratar os “e se” da vida de Evelyn, com cada realidade sendo acessada com uma espécie de serendipidade caótica.
Com uma ação inusitada, ela tem acesso a outra realidade e, novamente, as bizarrices têm um papel importante. Dessa vez, para nos desarmar.
Quando somos apresentados a uma realidade em que as pessoas têm dedos de salsicha, ou ao Raccacoonie, não nos preocupamos em procurar sentido naquilo.Simplesmente aceitamos e seguimos com a trama.
Mas o diretor, Daniel Kwan, fez questão de incluir os dedos de salsicha por outro motivo também:
“Esses são os momentos estranhos que tornam a vida tão especial e tornam o peso insuportável da consciência um pouco mais suportável.”
Niilismo vs. Existencialismo
Após acessar todas as suas versões do multiverso, a vilã Jobu Tupaki (Chewbacca?) se torna a personificação do Niilismo na trama, e passa a desacreditar e rejeitar qualquer significado.
Baseando-se na ideia de que, com acesso a infinitas possibilidades e realidades, nenhuma delas importa — criando um vazio existencial por excesso de informação.
Esse vazio é perfeitamente representado na figura do Everything Bagel.
E o melhor é a explicação de como surgiu a ideia dessa rosquinha:
“Existe um cálculo científico que você pode fazer para qualquer objeto no universo chamado Raio de Schwarzschild, que transforma o objeto em um buraco negro quando você o comprime nesse raio (…) a ideia é que, em uma certa densidade, qualquer coisa pode se tornar um buraco negro. Não seria engraçado se ela fizesse isso com um bagel?”
Na primeira metade do filme, temos a impressão que essa rosquinha foi construída para destruir o mundo e, na segunda metade, entendemos que era para Joy se autodestruir.
Mais uma forma de trabalhar com bizarrices para suavizar temas bem mais profundos, quando o vazio existencial por excesso de informação faz da vilã depressiva a ponto de construir algo para se matar.
Em contrapartida, o filme também trabalha o Existencialismo na ingenuidade de Waymond.
Se Joy personifica o Niilismo após acessar todo o multiverso, é como se o desconhecimento de Waymond permitisse que ele encontrasse significado em pequenos momentos e pequenas coisas.
E se o Everything Bagel era a representação perfeita na anulação de qualquer significado, são os Googly Eyes que representam o Existencialismo de Waymond.
Aqui, a dualidade entre Niilismo e Existencialismo se torna mais visual do que nunca, com a rosquinha e o olho funcionando quase como um Yin-Yang.
Tanto que a Evelyn somente consegue salvar Joy após fixar um Googly Eye em sua testa, ao reconhecer a importância da ingenuidade de seu marido e abraçando o Existencialismo.
Além de também fazer alusão ao terceiro olho, que, na tradição hindu, representa o centro da energia sutil da consciência e da espiritualidade, e reforça o objetivo de transmitir paz de espírito para aqueles que aderem à prática.
Muito além do multiverso
Pelo momento em que foi lançado, a comparação mais comum é com o universo da Marvel e, especialmente, com Dr. Estranho no Multiverso da Loucura.
Mas, como os próprios diretores reconhecem, foi a série Rick and Morty que trabalhou os conceitos do multiverso de forma mais parecida com o filme:
“Assistir à segunda temporada de Rick and Morty foi doloroso. Eu fiquei tipo ‘eles já fizeram todas as ideias que achávamos originais!’ Foi uma experiência realmente frustrante. Então parei de assistir Rick e Morty enquanto escrevíamos este projeto.”
Mas se engana quem pensa que Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo é só um filme de multiverso.
Além das incontáveis referências, sutis ou escancaradas, desde Ratatouille até Super Smash Bross, o multiverso aqui é uma bela metalinguagem para o momento em que vivemos.
Basta dar uma olhada nessa imagem sem o contexto do filme.
Ou lembrar do excesso de informação criando o vazio existencial
O Niilismo de Multiverso, que conhecemos com a Joy, é o Niilismo Moderno que vivemos.
“Nas últimas décadas, estivemos nesse lugar realmente perigoso como uma sociedade onde estamos mergulhados no pós-modernismo, mas não há nada de cura no pós-modernismo. É um lugar tão desconstrutivo e desestabilizador para existir.”
Mas, claro, os Daniels precisavam encontrar algo para balancear tanto caos e tanto ruído, e foi justamente nesse contraponto que eles trouxeram uma cena que já nasceu icônica.
Sobre a suposta ingenuidade de Waymond:
“Quando escolho ver o lado bom das coisas, não estou sendo ingênuo. É estratégico e necessário. É como aprendi a sobreviver a qualquer coisa.”
E como Daniel Scheinert disse, um dos grandes desafios ao escrever o filme foi encontrar uma forma de levar a audiência até o fundo do poço e, após chegar lá, como fariam para tirar o público de lá. Por consequência, como tirar eles próprios de lá.
“Que desafio terapêutico criamos para nós mesmos!”
Um belíssimo exercício terapêutico, a atuação da vida de Michelle Yeoh e, na minha opinião, o filme do ano até agora em 2022.