Não é todo dia que somos apresentados à uma ideia que muda nossa forma de pensar, mas foi o que aconteceu comigo.
Não digo que mudou minha vida, porque o aprendizado ainda é muito recente, porém, afirmo que pode mudar a vida das pessoas e vou te mostrar como.
Graças ao podcast Revisionist History — apresentado pelo escritor americano Malcolm Gladwell —, fiquei conhecendo uma linha de pensamento que me deixou absolutamente fascinado.
Gladwell fala sobre um ramo da teologia que nos ajuda a solucionar conflitos inéditos e que pode ser aplicada em qualquer ocasião.
Tratando-se de situações novas, recorrer aos nossos princípios é arriscado. Uma vez que eles se baseiam em experiências passadas e funcionam para contextos familiares.
Mas quando um problema é novo e insistimos em apelar para os nossos princípios, muitas vezes o que temos a oferecer são apenas chavões e indignação. É nesse ponto que entra a linha de raciocínio que me chamou tanto a atenção.
Como solucionar um conflito inédito?
Casuística é uma forma de pensamento que procura aprofundar primeiro nos detalhes para, depois, trazer a análise para um princípio geral.
Apresentando o conceito assim não parece lá tão inovador, não é? Tive a mesma reação no primeiro contato. Porém, nossa linha de raciocínio costuma seguir o caminho contrário.
Encontramos um problema inédito a ser resolvido, fazemos uma análise geral, buscamos encaixá-lo em alguma crença nossa e — talvez — em algum momento, os detalhes são lembrados.
Assim funcionam os julgamentos, a criação de estereótipos e inúmeras resoluções de conflito. Como muito bem dito por Carl Sagan sobre estereótipos:
“A interpretação mais generosa atribui esse modo de pensar a uma espécie de preguiça intelectual (…) nós nos concentramos em uma ou duas informações, que depois inserimos num pequeno número de escaninhos previamente construídos.”
—Carl Sagan)
Na casuística, um novo elemento não é depositado no escaninho com base em uma ou duas informações. Primeiro, os detalhes são esmiuçados e estudados. Depois, as melhores opções de escaninhos são levantadas e, finalmente, o novo elemento é depositado onde faz mais sentido.
Como tudo funciona melhor com exemplos, vamos ver primeiro um caso em que essa linha de raciocínio foi tão bem utilizada que chegou a envolver o Papa na discussão. E depois, um exemplo em que a sua não utilização foi trágica.
O dilema do co-inventor da pílula anticoncepcional
Conheça o Dr. John Rock.
Formado na Faculdade de Medicina de Harvard, ele sempre foi um grande estudioso da fertilidade e do sistema reprodutor feminino:
- foi o primeiro cientista a fertilizar um óvulo humano in vitro, em 1944;
- participou da pesquisa que descobriu quando a ovulação ocorre no ciclo menstrual;
- e foi diretor de uma clínica de fertilidade por 30 anos, em Brookline, Massachusetts.
Além disso, Dr. Rock sempre esteve na linha de frente, tratando mulheres de classe baixa com 8 filhos e inúmeros abortos — antes mesmo de chegar aos 30.
Na década de 50, assim que os hormônios progesterona e estrógeno foram isolados, ele começou a utilizá-los numa pesquisa para tratar a infertilidade. Nesse mesmo período, outro cientista — Dr. Gregory Pincus — trabalhava em uma ideia similar, porém, acreditava que os hormônios poderiam ajudar a prevenir a gravidez.
Eles passaram a trabalhar juntos e, em 1957, a pílula anticoncepcional — ou pílula de controle de natalidade — já havia sido inventada e estava aprovada pelo Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos (FDA).
Então, chegamos ao dilema de John Rock. Acontece que a mesma dedicação que ele tinha com os estudos e tratamentos da fertilidade, ele tinha com a religião católica.
Nessa época, métodos contraceptivos artificiais eram tabu e o Papa Pio IX chegou a se posicionar da seguinte forma, em 1930:
“Qualquer uso do matrimônio exercido de tal forma que o ato é deliberadamente frustrado em seu poder natural de gerar vida é uma ofensa contra a lei de Deus e da natureza. E aqueles que se entregam a isso são marcados com a culpa de um pecado grave.”
E o que era a pílula contraceptiva? Justamente uma forma de deliberadamente frustrar a geração de vida pelo ato sexual!
Portanto, John Rock tinha duas opções bem claras:
- Renunciar todo o seu trabalho no desenvolvimento da pílula e seguir os ensinamentos da Igreja Católica;
- Abandonar sua religião e seguir com seu trabalho.
Qual dessas opções ele escolheu? Nenhuma. Dr. Rock escolheu aprofundar-se nos detalhes de sua invenção e do contexto histórico.
Métodos anticoncepcionais físicos, como a camisinha e o diafragma, eram abominados pela Igreja. Porém, o hoje conhecido como Método da Tabelinha era aceito.
Nos anos 50, ele era comumente usado com o auxílio de um termômetro retal, por ser mais preciso, para medição e registro de temperaturas diárias.
Então, a análise que precisava ser feita era: em qual dos dois quadros a pílula anticoncepcional se encaixa melhor? Um método artificial ou semi-natural?
Por isso, assim que recebeu a aprovação do FDA, John Rock passou a trabalhar no livro “The Time Has Come: a Catholic doctor’s proposal to end the battle over birth control” — em tradução livre: “A Hora Chegou: proposta de um médico Católico para finalizar a batalha sobre a pílula contraceptiva”.
Na obra, ele mostra que sua invenção era um método semi-natural por motivos como:
- são utilizados os mesmos hormônios existentes no corpo da mulher;
- não existe uma barreira física, apenas a ingestão de uma pílula;
- o efeito da pílula é simular os efeitos de uma gravidez no corpo feminino, o mais natural estado possível segundo o autor.
Ou seja, por essa análise, a invenção de Dr. Rock era mais próximo do Método da Tabelinha — que já havia recebido a benção do Papa.
Diante desse desafio, o Vaticano convocou uma comissão internacional para decidir sobre a pílula de controle de natalidade, que contou com a participação de 72 pessoas e terminou, em 1966, com a votação em 68 a 4 — decidindo a favor da invenção de John Rock.
E qual o argumento por trás dessa definição?
Um argumento que segue a casuística: não se pode definir uma regra geral para contraceptivos, pois cada caso é específico. Cada mulher e cada família enfrentam situações específicas e, portanto, não se pode generalizar.
Por dois anos, a pílula anticoncepcional teve a aprovação da comissão do Vaticano, enquanto o Papa Paulo VI ponderava a decisão. No fim, ele decidiu se ater aos seus princípios e reafirmou o que seu antecessor havia determinado 38 anos antes: contraceptivos continuariam banidos.
Porém, o simples fato dessa discussão ter acontecido é um marco histórico importantíssimo. Tudo graças ao Dr. John Rock e à casuística.
Agora, o que pode acontecer quando nos atemos à preguiça intelectual descrita por Carl Sagan? Vários exemplos devem surgir em sua cabeça, mas faço questão de te apresentar um.
Bem menos complexo que a história de John Rock e também mais breve. Porém, revoltante.
Punks vs. Jocks
Conheça o Brian Deneke.
Com um visual chamativo que incluía sempre um moicano, roupas pretas e acessórios com spikes, Brian foi um jovem punk que nasceu na cidade de Amarillo, em 1978, no interior do Texas.
Esta será uma história mais breve porque se baseia em estereótipos, não em detalhes.
Enquanto Brian era um outsider, fazendo parte de um grupo social isolado e rotulado como violento, Dustin Camp era o estereótipo de atleta popular no colégio que vemos em filmes americanos. Daqueles que terminam o ensino médio como capitão do time de futebol americano e rei do baile de formatura.
Nos EUA e Canadá, os Jocks são um grupo formado por atletas. Bastante populares na escola, eles se interessam principalmente em esportes — tanto na prática quanto na cultura esportiva — e costumam deixar os estudos em segundo plano.
Como classes sociais opostas, Punks e Jocks se envolviam em atritos e rusgas constantemente na cidade de Amarillo. Até que, em Dezembro de 1997, o conflito culminou em uma briga generalizada no estacionamento de um restaurante — envolvendo cerca de 50 pessoas.
Não há consenso sobre como essa confusão se iniciou: os Jocks têm a sua versão e os Punks também. Porém, há consenso sobre como ela terminou.
Dustin Camp, que estava dirigindo o Cadillac dos pais, parecia fugir do local com sua namorada no banco de passageiro, mas não. Deu meia volta, acelerou, atropelou Brian Deneke e fugiu.
A descrição a seguir foi publicada no Dallas Observer, com base em relato da passageira e então namorada de Dustin:
“Ele está vestido com roupas punks. Ele está segurando um bastão preto. Instantaneamente ele se vira. Ele está olhando diretamente pra ela. O olhar, ela diz, é de ‘terror total’. O carro não para. O corpo do homem parece rolar no capô, então é puxado para baixo. Ela sente uma pancada, depois outra. Ela está esperando, esperando desesperadamente, que seja o meio-fio, não o corpo. Ela se vira de novo, olhando pela janela de trás, e vê uma figura amarrotada na calçada, com os membros abertos, ‘sangue por toda parte’. Uma garota está correndo em direção ao corpo. Ela ouve mais palavras do motorista: ‘aposto que ele gostou disso’. O carro não para.”
Quando a polícia bateu em sua porta no dia seguinte, encontraram o capô danificado, sangue de Brian no Cadillac e uma garrafa de whiskey vazia abandonada no carro.
Na versão de Dustin, o carro derrapou, Brian escorregou e tudo não passou de um acidente. Ele foi preso e acusado de assassinato.
No dia do julgamento, o que houve foi um julgamento do estilo de vida e aparência de Brian Deneke. Seu assassino foi sentenciado a cumprir pena em liberdade por homicídio involuntário, pois estava defendendo seus amigos dos Punks.
Saiu do tribunal pela porta da frente, olhando para os pais de Brian, terminou o Ensino Médio e foi aplaudido na formatura. Afinal, ele era o estereótipo do atleta popular no colégio.
Enquanto Brian foi apenas um Punk.
Motivo pelo qual ele foi morto aos 19 anos e a justificativa que bastou para que seu assassino pudesse seguir com sua vida. Detalhes foram esquecidos, estereótipos perpetuados e a vítima foi também o bode expiatório.
Esse é o tipo de tragédia que pode acontecer quando não avaliamos as particularidades de cada caso e nos atemos a velhos princípios. Tudo o que podemos oferecer é chavões e indignação.
Antes de procurar, não decida o que vai encontrar.
“Não deixe ninguém te dizer que corajosa é aquela pessoa de princípios. A pessoa corajosa, na verdade, é aquela que sabe quando deve deixar seus princípios de lado.“
Referências e inspirações para o artigo
Conheci a Casuística e a história de John Rock graças ao Malcolm Gladwell e três episódios da quarta temporada do seu podcast:
Enquanto a história de Brian Deneke, fiquei conhecendo graças ao excelente filme Bomb City, que também ilustra a capa desse artigo.
Outras referências utilizadas: