Se você tem o costume de acompanhar futebol frequentando estádios, ou mesmo pela TV — prestando o mínimo de atenção na torcida —, existe um canto que você certamente conhece: “Ei, juiz…” e você já sabe onde isso vai parar.
Além do hino nacional, parece ser a única música entoada por todas as torcidas. Embora o hino certamente não desperte a mesma vontade de cantar nos torcedores.
O som do apito se tornou uma espécie de trauma coletivo e os árbitros estão sob constante ataque. Não apenas das torcidas, mas dos dirigentes, treinadores, jogadores e, basicamente, qualquer pessoa disposta a palpitar sobre futebol.
Um possível motivo por trás disso foi o que me motivou a escrever este artigo e é o que vamos desvendar agora.
Modelagem de comportamento
Já parou para pensar qual o primeiro contato da maioria das crianças com palavrões, xingamentos e o clássico gesto do dedo médio erguido?
É difícil responder com precisão sem estatísticas e dados, mas existem boas possibilidades de ser num contexto futebolístico em que o árbitro era homenageado.
A primeira vez que presenciei meu pai pronunciando um palavrão, por exemplo, foi justamente no estádio do Mineirão. Lembro de ter estranhado esse momento a ponto de bater o olho novamente para conferir se era mesmo o meu pai, pois ele não se dirigia à nenhuma outra pessoa daquela maneira.
“Eu nunca diria o que falo com árbitros para uma pessoa na vida normal (…) já fui pego na câmera e minha filha me mandava mensagens: ‘Pai, o que você está fazendo? Está em todo o Twitter. Eu posso ler seus lábios, isso é constrangedor’.”
— Steve Kerr, treinador do time de basquete Golden State Warriors.
Porém, agredir verbalmente os árbitros não é uma atitude racional para que seja perpetuada pela modelagem. Ela pode até levar ao primeiro xingamento, mas não é o bastante para que se repita. É preciso algo mais.
Válvula de escape
Como bem disse Steve Kerr, as coisas que dizemos para os árbitros, ou sobre eles, jamais são ditas para outras pessoas na vida normal.
Portanto, como torcedores, é certo que usamos os juízes de futebol como bodes expiatórios para que possamos extravasar nosso estresse do cotidiano.
Isso já explica o motivo do árbitro se tornar um alvo das torcidas. Porém, existem diversas outras opções de válvulas de escape em campo:
- 22 atletas;
- dois treinadores;
- e ainda tem aquele vendedor de picolé que passa na sua frente com a caixa de isopor bem na hora do gol.
Nenhum deles recebe a mesma atenção que o juiz.
O álibi perfeito
“Os derrotados perdem por causa dele (o árbitro) e os vitoriosos ganham apesar dele. Álibi de todos os erros, explicação para todas as desgraças, as torcidas teriam que inventá-lo se ele não existisse. Quanto mais o odeiam, mais precisam dele.”
A reação das torcidas diante do julgamento do que é certo e errado pelo árbitro já reflete algo mais profundo: a sensação constante de que algo injusto está acontecendo.
Essa reação não é exclusiva aos árbitros de futebol, mas de qualquer agente com a responsabilidade de fazer cumprir as regras e de zelar pela justiça. Existem diversas autoridades similares, com a grande maioria delas sendo atacadas frequentemente.
No contexto das redes sociais, por exemplo, algoritmo se torna o alvo. Uma justificativa pronta para qualquer publicação com baixo alcance e um obstáculo superado por aquelas que foram além.
Como uma figura de autoridade cujas falhas são discutidas em rede nacional e acertos são ignorados, o árbitro de futebol se torna um reflexo da injustiça em nossas vidas.
No momento que ele entra em campo acompanhado por seus auxiliares, as vaias tomam conta dos estádios e são bem mais volumosas do que as que recepcionam o time adversário. O único apito que passa despercebido é o que dá início ao jogo.
A partir daí, qualquer som do apito já é o bastante para incentivar os primeiros ensaios do coro:
“Ei, juiz…”
Na histeria coletiva que os estádios se transformam, cada decisão do árbitro se torna uma afronta, como se o seu objetivo fosse disseminar a injustiça.
Se o juiz acerta ou erra, pouco importa. Os protestos apenas parecem ser contra ele.