Para essa semana, eu tinha um texto pronto. Tirei um tempinho no final semana, planejei um calendário editorial e já tinha um artigo no jeito, faltava apenas publicar.
Só que, diante dos últimos acontecimentos e de uma semana ainda mais atípica que as últimas, esse texto não reflete nem de perto o que eu gostaria de escrever hoje.
Joguei ele de volta para a gaveta e até cogitei não publicar um artigo essa semana. Então, me lembrei de uma história que se encaixa perfeitamente com o momento que estamos vivendo.
Sobre o dia que Johnny Cash tocou na Casa Branca e bateu de frente com o presidente dos EUA, Richard Nixon.
Resumindo assim, parece que foi tudo bem simples e direto, mas não.
A lenda do Country, por muito tempo, posicionou-se a favor do governo e do presidente sem se preocupar com o contexto. Ele era um conservador extremista, porque foi criado assim pelos seus pais.
Não à toa, recebeu o convite para tocar na Casa Branca diante do presidente. O que Nixon não sabia era o tanto que o repertório seria diferente do que ele esperava.
Mas, antes de chegarmos lá, precisamos conversar sobre as semelhanças entre os anos 70 de Nixon e os dias em que vivemos. Lembra daquela máxima de que a história se repete?
“Quanto mais as coisas mudam, mais elas permanecem as mesmas.”
— Jean-Baptiste Alphonse Karr
Semelhanças entre os EUA dos anos 70 e o que vivemos hoje
Esse tópico sozinho renderia um livro, tamanhas são as semelhanças entre os dois momentos e, principalmente, entre a postura dos presidentes Richard Nixon e Donald Trump.
Tanto que Bob Woodward, um dos jornalistas responsáveis por desvendar o escândalo que levou à renúncia de Nixon, escreveu um livro sobre o atual presidente — Medo: Trump na Casa Branca.
Como o foco aqui não é construir esse paralelo, vou apenas levantar alguns pontos que exemplificam bem como os dois momentos são similares.
No final da década de 60, os movimentos pelos Direitos Civis e contra a Guerra no Vietnã tomavam conta dos Estados Unidos. O país estava dividido por questões de raça, guerra, paz e uma batalha pelo que significava ser um americano patriota — confiar em seu presidente ou desafiá-lo?
A campanha de Nixon que o levou à presidência foi graças aos votos do Sul, apostando principalmente no medo que os sulistas segregacionistas tinham do movimento dos direitos civis.
Se hoje temos uma pandemia para agravar alguns posicionamentos de Trump. Com Nixon, era a guerra do Vietnã, que colaborou para a polarização do país entre os Pombos, que manifestavam-se pelo seu fim, e os Falcões, que eram a favor dela.
Uma guerra que ele prometeu dar um fim quando foi eleito, mas que acabou estendendo por mais quatro anos e levou à morte de 20 mil soldados norte-americanos e mais de 1 milhão de vietnamitas.
Olhando diretamente para os presidentes, os temperamentos explosivos e o ódio presente nos discursos são semelhanças absurdas.
E o próprio Trump já alegou ter aprendido com Nixon ao não demitir o conselheiro especial que investigava possíveis interferências russas em sua eleição:
“Eu acompanhei Richard Nixon demitindo todo mundo, e isso não terminou muito bem.”
Como você provavelmente notou, muitas dessas semelhanças e paralelos também cabem com o nosso Brasil de hoje.
Por isso, essa história é tão importante.
Johnny Cash entra em cena
Um dos discursos mais marcantes de Nixon foi em 1969.
Enquanto milhares de jovens se manifestavam nas ruas pelo fim da guerra, ele pediu o apoio da “minoria silenciosa” para estendê-la e ainda afirmou que a juventude manifestante não representavam o futuro dos EUA.
“O ‘combustível radical’ que vocês veem nas suas televisões noite após noite, eles não são a maioria da juventude americana de hoje e não serão os líderes da América amanhã.”
— Richard Nixon
Após ouvir o posicionamento do presidente, Johnny Cash o apoiou, assim como a maioria dos sulistas. Afinal, patriotismo para ele era apoiar o presidente — tanto que ainda fez questão de anunciar isso em seu programa de auditório, The Johnny Cash Show.
Bastou fazer o anúncio que o convite para se apresentar na Casa Branca foi imediato. O cantor representava Nashville, a música Country e poderia fazer milagres pela popularidade de Nixon.
Junto com o convite, vieram duas sugestões de músicas do presidente para o repertório:
- Okie from Muskogee, de Merle Haggard: uma sátira sobre o movimento contra a guerra;
- Welfare Cadillac, de Guy Drake: “sobre um pai inepto que depende de ‘tolos’ que pagam impostos para financiar seu novo carro e alimentar sua família”, como o New York Times descreveu na época.
A repercussão foi péssima e, ao mesmo tempo, gerou uma expectativa enorme em torno da apresentação de Johnny Cash na Casa Branca.
Era difícil prever qual seria o “Johnny Cash desse show exclusivo”. O cantor que declarou apoio ao presidente em mídia nacional? Ou o que fazia turnês em presídios desafiando as recomendações de seus diretores?
Antes da Casa Branca, uma turnê no Vietnã
Quatro meses antes da apresentação na Casa Branca, marcada para 17 de abril de 1970, ele decidiu viajar para se apresentar para os soldados norte-americanos e contribuir da forma que estava ao seu alcance.
Era dezembro de 1969 e o cantor viajou para o Vietnã acompanhado de sua esposa, June Carter.
O choque de realidade dessa visita foi nítido e ficou registrado na canção Singin’ in Vietnam Talkin’ Blues, lançada em 71, que traz uma narrativa do que ele viveu em Saigon:
“Fechamos a noite com uma última música e nos arrastamos para a cama para um pouco de paz e tranquilidade. Mas não havia paz, não havia tranquilidade (…) Dormimos alguns minutos, quando um soldado bateu na nossa porta e disse que, na noite anterior, trouxeram sete mortos e quatorze feridos.”
— Singin’ in Vietnam Talkin’ Blues, Johnny Cash
Depois de ver a guerra de perto, o cantor de Country viu em sua voz a oportunidade de ir além do entretenimento e passou a cantar para aqueles que precisavam acreditar em algo para se reerguer.
Foi em Saigon que nasceu a versão lendária do Johnny Cash sempre vestido de preto.
E foi também lá onde surgiu o ponto alto do show de 17 de abril.
Johnny Cash ao vivo na Casa Branca
No mesmo dia em que a nave Apollo 13 aterrissou na Terra, Johnny Cash desembarcou na Casa Branca.
Nessa altura, era certo que Okie from Muskogee e Welfare Cadillac não fariam parte do show, mas o repertório era um mistério até para a própria banda que o acompanhava.
A abertura do show foi com A Boy Named Sue e, após alguns hits e algumas músicas religiosas, Johnny anunciou uma canção inédita.
Já vi inúmeras bandas de hardcore e punk anunciarem que sua próxima música destruiria o “sistema”, mas, após o último acorde de cada uma delas, o tal “sistema” sempre continua lá.
Johnny Cash não se deu ao trabalho de fazer um anúncio como esse. Ele apenas declamou a recém escrita What is Truth, enquanto encarava Nixon logo à sua frente, na primeira fila.
E se o bendito “sistema” pode ser quebrado por uma música, foi o que aconteceu a seguir.
“E a voz solitária da juventude grita: o que é verdade?
O velho desligou o rádio, disse: ‘Para onde foram todas as músicas antigas? As crianças com certeza tocam música engraçadas nos dias de hoje (…) Parece-me que todos eles enlouqueceram.’
Bem, cara, será que as garotas e garotas estão tentando ser ouvidos acima do seu barulho?
E a voz solitária da juventude grita: o que é verdade?
Um menino de três anos sentado no chão olha para seu pai e pergunta: ‘Papai, o que é guerra?’ Filho, é quando as pessoas lutam e morrem. O menino de três diz: ‘Papai, por quê?’
Um jovem de 17 na escola dominical aprende sobre a regra de ouro. No passar de um ano, pode ser sua vez de sacrificar a própria vida.
Você pode culpar a voz da juventude por perguntar ‘o que é verdade?’
Um jovem sentado no banco das testemunhas. O homem com o livro diz ‘Levante a mão, repita comigo: eu juro solenemente’. O juiz olhou para o seu cabelo comprido e, mesmo que o jovem tenha jurado solenemente, ninguém parece ouvir mais. Nem importava se a verdade estava lá, foram suas roupas rasgadas e o comprimento de seu cabelo.
E a voz solitária da juventude grita: o que é verdade?
Dançando ao som da música do momento, a jovem garota encontrou novas maneiras de mover seus pés. O jovem rapaz, que fala na praça da cidade, está tentando dizer a alguém que ele se importa.
Sim, as pessoas que vocês estão chamando de selvagens serão os líderes em breve. Este velho mundo está despertando para um dia recém-nascido.
E eu juro solenemente que será do jeito deles.
É melhor você ajudar a voz da juventude a encontrar ‘o que é a verdade’.“
Se você leu até aqui, provavelmente foi pelo interesse em saber como foi que Johnny Cash calou a Casa Branca em um show. Bem, agora você já sabe.
Mas esse não é o ponto mais importante dessa história.
Caso tivesse se apegado aos seus princípios, sua criação e suas origens, Cash teria feito um show regular e jamais teria se tornado essa entidade lendária da música que conhecemos hoje.
Isso somente foi possível porque ele repensou seu posicionamento.
Cenários muito conturbados, como esse dos EUA de 1970 e o que vivemos hoje, costumam ser seguidos de mudanças drásticas. No dia 17 de abril de 1970, era impossível prever quando a Guerra do Vietnã acabaria e que Nixon renunciaria quatro anos depois.
Da mesma forma que não conseguimos prever quando e como será esse “novo normal” que tanto se fala.
Para que esse “novo normal” não seja mais catastrófico que o “normal de hoje”, não vamos nos agarrar ao tradicionalismo e princípios com unhas e dentes.
Como Malcolm Gladwell disse ao final de um episódio de seu podcast Revisionist History:
“Não deixe ninguém te dizer que corajosa é aquela pessoa de princípios. A pessoa corajosa, na verdade, é aquela que sabe quando deve deixar seus princípios de lado.“