[Atenção! Este texto está repleto de spoilers!]
Coringa, o filme, é uma obra de arte daquelas que custa a sair da sua cabeça. Devido às inúmeras reflexões que ele proporciona e pela forma brilhante como a narrativa é construída.
Eu, por exemplo, fui três vezes ao cinema para acompanhar a transformação de Arthur Fleck no palhaço do crime.
A primeira, no dia do lançamento; a segunda, com minha namorada; e a terceira, porque precisava ver de novo e dar a devida atenção que os detalhes do filme merecem.
Um dos principais méritos do filme é trabalhar bem com referências fora do universo dos quadrinhos. O diretor Todd Phillips procurou entender exatamente o estilo do filme que faria e buscou inspiração em grandes obras do cinema — que foram devidamente homenageadas em Coringa.
Algumas dessas referências são bem explícitas, enquanto outras são mais interpretativas.
Taxi Driver, de Martin Scorsese
De Taxi Driver, saiu boa parte da ambientação da cidade de Gotham de Phillips, que se assemelha muito à imunda Nova York de Martin Scorsese dos anos 70.
O arco do protagonista também apresenta similaridades. Em Taxi Driver, acompanhamos Travis Bickle, um solitário veterano da guerra do Vietnam, que tem dificuldade para dormir e arruma um emprego noturno como motorista de táxi.
Ele não consegue se encaixar na sociedade e, enquanto buscava um norte para sua vida, conhece uma prostituta de 12 anos. Para resgatá-la desse submundo, Travis toma uma atitude drástica, arrisca sua vida e assassina o cafetão que manipulava a garota.
A cena do metrô, em que o riso descontrolado de Arthur o expõe aos três jovens que importunavam uma moça, pode ser tranquilamente vista como uma homenagem ao desfecho de Taxi Driver.
O Rei da Comédia, também de Martin Scorsese
Com O Rei da Comédia, as semelhanças são ainda maiores.
O protagonista Rupert Pupkin, interpretado por Robert de Niro, sonha em participar do Talk Show do seu grande ídolo, Jerry Langford.
Ele tem vários devaneios sobre como seriam sua entrada e participação, ensaia em casa e até mesmo imagina seu casamento acontecendo no programa.
Para garantir que sua participação realmente ocorresse, ele chega ao ponto de sequestrar o apresentador e, em rede nacional, Rupert assume seu crime:
“Provavelmente muitos de vocês perguntam por que motivo o Jerry não está aqui. Eu digo a vocês: ele está amarrado… e fui eu que o amarrei.
Sei que pensam que é uma piada, mas acreditem. Foi a única maneira que encontrei para entrar no show business (…) Isso, riam! Obrigado. Agradeço. Mas a verdade é que estou aqui.
Amanhã saberão que não é brincadeira e pensarão que sou louco. Mas vejam desta maneira: mais vale ser rei por uma noite do que tolo a vida inteira!”
Os devaneios e ensaios de se imaginar no Talk Show, a idolatria que se torna doentia e o desejo de ser notado são todos elementos que também vemos no Coringa.
“Durante toda minha vida, eu nem sabia se eu realmente existia. Mas eu existo. E as pessoas estão começando a perceber.”
E a presença de Robert de Niro como apresentador foi o toque perfeito para homenagear O Rei da Comédia.
Laranja Mecânica, de Anthony Burgess e Stanley Kubrick
“O termo Ultraviolência foi usado pela primeira vez no livro Laranja Mecânica para se referir a atos de extrema violência totalmente aleatórios e injustificados. É a violência pelo prazer da violência. Uma violência que não precisa ser carregada por raiva ou qualquer outro sentimento.”
A mesma ultraviolência está presente em Coringa, principalmente com Arthur como vítima.
Outro artifício que aparece no filme de Todd Phillips — e que também está presente em Laranja Mecânica — é o uso da música e da dança em cenas violentas. Isso evidencia que, para o agressor, atacar outras pessoas e cometer atrocidades é tão natural quanto cantarolar uma canção.
A cena no metrô é um exemplo claro disso, com um dos jovens abordando Arthur enquanto cantava Send in the clowns e preparava-se para agredi-lo.
Qualquer semelhança com a icônica cena de Alex cantando Singing in the rain, enquanto agredia o casal morador da casa que acabara de invadir, não é mera coincidência.
Clube da Luta, de Chuck Palahniuk e David Fincher
“O que você acaba fazendo é passar a vida procurando um pai e um Deus. O que precisa considerar é a possibilidade de Deus não gostar de você. Pode ser que Deus nos odeie.
Isso não é a pior coisa que pode acontecer (…) Talvez porque seja melhor o ódio de Deus do que a indiferença Dele (…) O que é pior, o Inferno ou nada? Apenas se formos pegos e punidos é que poderemos ser salvos. (…) Dessa forma, Deus pelo menos saberá nosso nome.
Quanto mais fundo você descer, mais alto voará. Quanto mais longe você correr, mais Deus vai o querer de volta.”
— Chuck Palahniuk, Clube da Luta
As semelhanças com a trama de Coringa são tão grandes, que, se o trecho acima fosse encaixado no filme de Todd Phillips, ele faria perfeito sentido.
Arthur procura insistentemente pela figura de um pai — tanto em Murray Franklin, quanto em Thomas Wayne. Quando se torna alvo de deboche e é rejeitado por eles, o Coringa responde com violência em rede nacional e, finalmente, é notado.
E o verdadeiro palhaço do crime somente aparece na tela depois de Arthur perder tudo: o acompanhamento da assistente social, os remédios, o emprego, o sonho de ser comediante e o amparo materno.
“Apenas depois de perder tudo é que você está livre para fazer qualquer coisa.”
— Chuck Palahniuk, Clube da Luta
Ao reconhecer e homenagear obras anteriores, Todd Phillips criou um filme que já nasceu com os requintes de um grande clássico do cinema.
E você, o que achou das referências em Coringa? Reparou em mais alguma que não mencionei no artigo?
Diz aí nos comentários!
* Comecei a escrever este texto para desconstruir o filme por completo — com uma análise das referências, da trama e das técnicas de storytelling que podemos aprender com ele. Só que o artigo ficou gigantesco e decidi quebrá-lo em duas partes.
Esta é a primeira. A segunda, que será mais focada em Storytelling, sai ainda nesta semana! Para não perder, basta inscrever-se na minha Newsletter clicando aqui para recebê-la diretamente em sua caixa de entrada. 🙂